Rol taxativo ampliaria ainda mais o desequilíbrio entre o setor público e o setor privado
A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) está discutindo um tema que pode alterar uma interpretação consolidada há mais de 20 de anos pelo Poder Judiciário e que afeta diretamente milhões de pessoas que têm planos de saúde, repercutindo também no sistema público de saúde. Trata-se de estabelecer a nova e perigosa interpretação de que o rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) é taxativo e não exemplificativo, como compreende hoje a maior parte da jurisprudência.
O Judiciário, há mais de 20 anos, tem sido um importante socorro aos usuários de planos de saúde, sobretudo em casos de negativa de cobertura, que, infelizmente, são comuns no setor de saúde suplementar. Como se observa em vários outros países no mundo, de forma bem documentada, há uma tendência de seguradoras de saúde negarem coberturas, que para elas implicam em gastos.
O rol, conforme consta na Lei 9.961/98, que criou a ANS, é uma referência básica para contratos de planos de saúde, com tratamentos que as operadoras devem cobrir. A jurisprudência majoritária compreende que sua natureza é exemplificativa, isto é, que as obrigações de cobertura das operadoras de planos de saúde vão para além de seu conteúdo, incluindo eventualmente outros procedimentos.
A disputa recente no STJ, introduzida a partir dos Embargos de Divergência 1886929/SP e 1889704/SP, no entanto, busca alterar essa perspectiva, fundamentando-se em argumentos econômicos. Diversas associações de pacientes e até mesmo personalidades famosas ligadas a causas de pessoas com deficiências ou patologias já indicaram nas últimas semanas como a mudança impactaria negativamente em seus direitos associados aos contratos. Convém também abordar o lado econômico. Uma análise um pouco mais detida mostra que os fundamentos para o rol da ANS taxativo não prosperam.
A primeira tese é a de que a interpretação pelo rol exemplificativo quebraria o mercado. Quem a defende parece não ter vivido no país nos últimos dez anos, em que mesmo com essa interpretação vigente e consolidada nos tribunais, o mercado de saúde suplementar apenas cresceu, apresentando lucros astronômicos.
Segundo dados da própria ANS, a última década foi de crescimento das receitas e das despesas, com alargamento da diferença entre estas (arrecada-se mais do que se gasta). De 2010 a 2020, as receitas arrecadadas por meio de mensalidades saltaram de R$ 72,6 bilhões para R$ 217,5 bilhões. As despesas também cresceram, mas sempre abaixo das receitas totais, com aumento da diferença em favor das empresas[1].
Além disso, como bem lembrou a ministra Nancy Andrighi ao apresentar seu voto durante a continuidade do julgamento dos dois recursos sobre o tema, na Nota Técnica nº 97, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) chama a atenção para o fato de que entre os anos de 2014 e 2018, mesmo com a diminuição de consumidores vinculados a contratos de planos de saúde, “o lucro líquido per capita no mercado de planos de saúde mais que dobrou, considerada atualização para valores constantes de 2018, passando de R$ 75,70 em 2014 para R$ 185,80 em 2018”[2].
Vale ressaltar, ainda, que a saúde suplementar é um dos poucos setores que elevou seus ganhos durante a pandemia. Em documento enviado ao Idec pela ANS, após pedido de informação, constata-se que o resultado líquido trimestral da saúde suplementar praticamente triplicou no segundo trimestre de 2020[3].
Ou seja, durante o período de 2010 a 2020, em que os dados econômicos e financeiros foram os acima indicados, perdurou pacificamente o entendimento do Judiciário acerca do caráter exemplificativo do rol da ANS. Os argumentos de riscos para a sustentabilidade apontados em diversos veículos de imprensa e em pareceres não são sustentados empiricamente pelos dados da própria agência reguladora.
Em outra linha argumentativa, alguns artigos de opinião recentemente publicados apontam que o rol com caráter taxativo seria também uma segurança para o consumidor, evitando que as negociações de cobertura retrocedessem apenas ao que estivesse no contrato, tal como a situação era antes da Lei 9.656/98.
Este ponto de vista desconsidera a massiva realidade dos tribunais[4] hoje, que interpretam o rol como uma referência mínima de cobertura – ou seja, ponto de partida para os contratos em saúde suplementar. Por isso também é falso dizer que a interpretação exemplificativa acabaria com a segurança do consumidor. Por essa razão, inclusive, o rol é importante e quanto mais se aproximar da realidade, mais conseguirá contribuir para a transparência e previsibilidade que o setor tanto almeja.
Coberturas para além do rol são essenciais quando há devida fundamentação técnica, especialmente quando se verifica que a lista está desatualizada, insuficiente ou que não atende à necessidade do usuário. O próprio relator do caso, o ministro Luis Felipe Salomão, reconhece que há situações em que se deve autorizar procedimentos para além do rol. Assim, a mudança para a interpretação taxativa seria um retrocesso, que apenas prejudicaria quem precisa de tratamentos, pois tornaria extremamente simples para as operadoras negar procedimentos.
Não apenas para os usuários, o rol taxativo seria uma novidade amarga para o sistema público. Os procedimentos com prescrição médica fora do rol negados pelas operadoras, geralmente de média e alta complexidade, seriam inevitavelmente cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando ainda mais o desequilíbrio entre o setor público e o setor privado.
Vale destacar que o sistema de saúde brasileiro possui uma configuração bastante particular. Raros são os países que confiam em seguradoras de saúde em livre concorrência para assegurar o acesso à sua população. Apenas Suíça, Holanda e EUA, entre os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os dois primeiros com regulação muito mais intensa que a brasileira, inclusive de preço, e o terceiro com um dos piores desempenhos em saúde no grupo de países da organização. Por essa razão, inclusive, é difícil recorrer a exemplos de direito comparado para o debate sobre a natureza do rol da ANS.
Por aqui, a estratégia nacional de saúde, o SUS, perde com a saúde suplementar. Operadoras competem com o SUS por recursos, por insumos e por força de trabalho e a existência de um sistema universal muitas vezes alivia os gastos das operadoras, já que seus consumidores também buscam assistência pública. Tornar o rol taxativo aprofundaria ainda mais essa relação de desequilíbrio. Não à toa o controle social do SUS já se posicionou pela necessidade de reconhecer o caráter exemplificativo da lista de coberturas.
Operadoras de planos de saúde estão entre as empresas mais reclamadas pelos consumidores — no ranking de atendimentos do Idec, permaneceram no topo das reclamações por oito anos consecutivos[5], voltando ao topo das reclamações em 2021[6]. Sua insistência em negar coberturas contrasta com seus ganhos crescentes. Para além do drama vivido por consumidores sem acesso a tratamentos, a negativa prejudica a economia como um todo.
O Judiciário foi, até o momento, um dos redutos resistentes contra a agenda constante de descumprimento de contratos pelas operadoras. Tornar o rol da ANS taxativo é derrubar a lógica de um contrato de plano de saúde e ampliar, ainda mais, as já vantajosas condições das operadoras no Brasil.